O GRINCH TRABALHA NAS FINANÇAS
Esta é uma linda história, daquelas que podemos partilhar à mesa da Ceia de Natal.
Em 2015, a minha filha fez um trabalho em part-time e passou um recibo verde. Na altura devida, foi fazer o pagamento do IVA às Finanças. Como se atrasou dois dias em relação à data, teve que pagar uma “pequena” multa no valor de 52 euros.
Nesse dia eu expliquei-lhe o que eram juros usurários e ela questionou, de forma pertinente, se a usura é crime como é possível que o Estado o faça de forma impune com os contribuintes deste “belo país à beira-mar plantado"?
Encolhi os ombros e, contrariada, tive que lhe mostrar um unilateral ponto de vista económico (o dos cobradores do “dízimo"), utilizando, a título de exemplo, a ligação desnivelada dos trabalhadores com a máquina fiscal do Estado, sempre tão bem oleada. Tal como eu e os restantes portugueses, ela ficou sem perceber os critérios de tratamento para com os cidadãos e para com os Cidadãos.
Longe estava eu de sonhar que no execrável ano de 2020, a poucos dias do Natal, a minha filha me telefonaria do seu emprego, sentindo-se envergonhada porque o seu patrão lhe disse que recebeu uma notificação para lhe penhorar o salário.
Tentei ficar calma e acalmá-la mas, qual não foi o meu espanto, quando descobri que o pagamento da coima não foi considerado (não se sabe porquê) e ela estava devedora de 139 euros a esta instituição estatal.
Solução: pagar primeiro e reclamar depois.
Conclusão: ela recebeu uns míseros 123 euros como salário do mês de Dezembro, fruto de vários dias sem trabalhar devido às condicionantes impostas pela pandemia mas pagou uma coima no valor total de 193 euros, muito mais do que o valor do IVA inicial. Considerei esta atitude muito didática para uma jovem que começa agora a sua atividade de contribuinte e da qual não irá livrar-se até, pelo menos, aos 65 anos. Ela passou a perceber, também, porque é que tantos tentam “fugir ao fisco". O próprio Estado incentiva esta fuga quando se dá ao trabalho de penhorar um salário já de si miserável, qual Mr. Grinch disposto a acabar com o nosso Natal.
No entanto, esta situação é recorrente e já todos fomos vítimas destes erros do sistema ou conhecemos alguém que o foi.
E até nem seria uma coisa do outro mundo se nós não nos encontrássemos já sobejamente fustigados com a falta de dinheiro, o desemprego e a instabilidade causada pela pandemia que insiste em não nos deixar, criando um enorme cansaço devido a esta luta desigual e injusta.
Se é pedido a todos os portugueses um esforço sobre-humano para que, como um todo, possamos combater as desigualdades sociais que agora se acentuam devido à grave crise causada pela atividade virulenta de um microrganismo, como é possível que a máquina fiscal do Estado não veja a sua atividade punitiva/ executiva suspensa por tempo indeterminado e de acordo com as dificuldades de cada um.
Foram proibidos os despejos, foram prorrogadas as datas dos pagamentos dos serviços de que usufruímos, apelou-se à baixa das rendas, criaram-se fundos de apoio e uma série de outras resoluções para que as pessoas não se vissem a braços com um desaire financeiro repentino e sobre o qual não têm qualquer responsabilidade. O Estado Paternalista lá foi desempenhando o seu papel, mais ou menos bem, uma vez que nos encontramos todos neste barco à deriva que, sem dúvida, nos vai trazer muitos mais amargos de boca:
O primeiro através de um inclemente atentado à nossa saúde e ao bem estar da população.
O segundo com o implodir de um SNS já de si moribundo há muito tempo.
O terceiro, com uma gravíssima crise económica para a qual não vejo qualquer solução a curto prazo.
Para mim, esta situação é particularmente perturbadora pois a máquina fiscal é dirigida por um governo de esquerda para o qual contribui com o meu voto. Se isto é a minha esquerda, devo dizer que andam a dar tiros no próprio pé e sim, estão a abrir uma grande autoestrada para que partidos oportunistas e surreais como o do sr. Coiso possam arrancar a grande velocidade e com cada vez mais apoiantes, entretanto, desiludidos com estes desmandos governamentais.
Entretanto, surgem grandes debates sobre o racismo, sobre igualdade de género, sobre a ascensão profissional da Cristina Ferreira ou a legitimidade do Ljubomir para se manifestar livremente e outros tantos temas que servem para nos embalar e distrair do que é realmente importante.
Preocupem-se com a pandemia provocada por um vírus resistente e transversal a todos os povos, continentes, ideologias… mais democrático do que este não há e é ainda um cruel assassino, acima de tudo. Neste caso, sem culpados a quem se possa fazer julgamento justo.
Preocupem-se em não deixar rebentar pelas costuras o nosso Serviço Nacional de Saúde e castigar duramente quem dele tanto precisa e aqueles que lá trabalham com recompensas adiadas ad eternum… haja palmas à janela, pelo menos, é que nós não somos ingratos.
Preocupem-se, já agora, com esses seres estranhos que são os artistas e que sobrevivem sem trabalho há mais de 9 meses, vá-se lá saber como! Não sei se há alguém que pense nisso mas os músicos, os atores, os artistas circenses, os pintores, os artesãos e muitos outros são pessoas que escolheram como forma de vida encantar os outros, trazer alegria a vidas soturnas, mesmo que isso signifique trabalharem, na maioria das vezes, sem rede. O Estado tem uma ténue segurança para lhes oferecer mas, em tempos de crise como agora, tiram a rede debaixo dos pés destes homens e mulheres, sem apelo nem agravo.
É de mau tom, é de um péssimo gosto estar agora a fazer cair penhoras, justas ou injustas, em salários que mal chegam para pagar as despesas mensais.
Penhorem sim mas aqueles que roubaram à séria, cujas contas se encontram em paraísos fiscais.
Procedam à venda judicial de todos os bens supostamente arrestados a esses a quem a Justiça tarda em chegar, esses que enriqueceram de forma pouco clara, uma grande maioria à custa dos contribuintes e que esse dinheiro sirva para fortalecer os cofres do Estado em vez de penhorarem 138 euros a quem ganha tão miseravelmente.
E, por favor, não me obriguem a deixar de exercer a minha intenção de voto.
Na minha ideologia de esquerda não há lugar para atitudes de grave injustiça social nem para subserviência para com o capitalismo que nos escraviza e muito menos para demagogias baratas e ocas de sentido e intenção.
É que de intenções está o Inferno cheio e o Inferno é aqui e agora.
Festas Felizes, senhores governantes!