A violência doméstica é inegavelmente um dos maiores flagelos sociais e, ao mesmo tempo, uma das situações com o cariz mais democrático que conheço: é transversal a todas as classes sociais, a todos os estatutos académicos, a todas as idades e a todos os sexos, constituindo as mulheres, os idosos e as crianças o alvo preferencial, provavelmente, por uma questão meramente genética pois são estruturalmente o elo mais fraco da raça humana.
Hoje, quero falar de e para as mulheres!
Hoje, quero falar de e para as mulheres!
Há um sem número de motivos que levam os homens a agredir uma mulher mas aquele que considero mais relevante é o medo, o homem agride porque tem medo. Medo de perder, medo de ser mais fraco, medo de ser inferior, medo de ouvir, medo de não compreender, medo de não controlar. E, qual animal acossado, ataca aquela que vê como sua pertença, mais frágil e mais fácil de dominar. Existem diversos tipos de agressores: os inteligentes, os manipuladores, os chantagistas, os sádicos, os psicopatas, os sociopatas, os obsessivos, os atenciosos, os viscosos e muitos mais...
Por seu turno, as mulheres, não tendo um denominador comum no seu comportamento, estatuto, grau académico ou classe social, pactuam com os agressores com base no amor que sentem ou pensam que sentem, no amor que ele lhes dedica ou pensam que ele lhes dedica, na existência de filhos, na ausência de autonomia financeira, no medo da solidão, no receio da opinião pública e familiar e outros.
Vou evitar referir-me aos indivíduos com patologias psiquiátricas ou alterações comportamentais clinicamente comprovadas para evitar alongar-me em demasia.
Vou falar de mim, de ti, da vizinha, da tia, da amiga, da prima, da conhecida, de todas e de nenhuma em particular.
É minha convicção de que o nosso primeiro erro acontece quando decidimos não acreditar na luz vermelha que se acende em nós quando temos um pressentimento. O pressentimento surge como um aviso do que vai suceder e nós sabemos, oh, se sabemos que algo está mal: uma frase, um tom de voz, um olhar... mas o amor, o amor continua parcialmente cego, dividido entre o que vê, o que não vê e o que não quer ver. E acabamos por entrar naquela relação certas de que foi uma impressão, que ele estava mal disposto e que, posteriormente, vamos acabar por conseguir mudá-los. Ledo engano que tão cedo se desfaz...
Eu lembro-me, como se fosse hoje, da primeira bofetada que apanhei, não dos meus pais que nunca me bateram mas do meu marido.
Essa lembrança ainda hoje me traz um sorriso ao rosto porque me aviva a memória do dia em que decidi romper com a tortura, sub-reptícia e silenciosa, com que convivia há anos, 18 anos, mais precisamente. Foi a minha manhã de Abril, o meu grito de Ipiranga...
Levantei-me, fui direita à cozinha e preparei o meu pequeno-almoço sem preparar o do meu marido, pecado primeiro. Fui presenteada com mais uma de muitas séries de impropérios, entre os quais, o que eu mais odiava: "puta", "puta", "puta".
Aquela palavra ecoou na minha cabeça mais vezes do que o costume e eu pensei: "EU NÃO MEREÇO! EU NÃO MEREÇO!".
Respondi com uma serenidade e uma coragem até então desconhecidas: "Vai chamar puta à grandessíssima puta que te pariu!".
Não sei se acabei a frase, sei sim, que aconteceu o que eu temia há tanto tempo. Eu sabia que no primeiro dia que ousasse responder-lhe, este seria o resultado (eu sabia!).
A violência com que a mão de um homem com quase o dobro do meu tamanho me bateu fez com que, por momentos, eu deixasse de ouvir e nem sei descrever o tamanho da dor porque se misturou rapidamente com a vergonha, com o terror e com a coragem inusitada de quem já nada tem a perder, nem a própria vida.
Consegui libertar-me dele, enquanto me agarrava pelos cabelos, e fugi para a casa de vizinhos com uma caneca de leite na mão que não larguei, vá-se lá saber porquê!
Nos dias, meses que se seguiram não voltei atrás com os meus intentos e todos os dias lhe dizia que não mais queria estar casada com ele. Naturalmente, àquela agressão, seguiram-se outras... a Besta tinha sido libertada com a minha insubordinação.
Sabe bem o que diz quem afirma que um murro dói mas passa, com o tempo a memória da dor desaparece. No entanto, a marca psicológica é mais profunda e enterra-se em nós como um ferrão e nem meses, anos de terapia conseguiram reparar os estragos provocados por frases como: "Sabes lá o que estás a dizer!", "Cala-te e não me envergonhes!", "És mesmo igual à merda da tua família!", "Se não fosse eu a ficar contigo, andavas para aí aos caídos sem ninguém te pegar!", "Quando saíres, vai decente como as mulheres da minha família!"... Todas estas frases e muitas outras poderiam e foram ditas em público para aumentar a humilhação.
Sob a protecção das telhas de nossa casa e sem que ninguém soubesse, estas frases eram acompanhadas de pedidos de relatórios diários sobre o meu dia, passagem da roupa na frente dele para ver se estava "decente" (nada de decotes, nada de calças justas),tentar chegar a ele para lhe dar um beijo porque ele não se baixava, não falar com homens, evitar certas amigas, evitar a família, meticulosa calendarização da vida íntima com direito a sanções e castigos e demais exigências que eu tentava cumprir por pensar que um casamento era assim e assim fiz silêncio à minha volta.
A única maneira que encontrei para me perdoar a mim própria foi constatar que eu tinha apenas 16 anos quando o conheci. Ele com 22, conseguiu manipular-me, controlar-me de tal maneira que me destruiu antes que eu tivesse tempo de me construir. O resto da minha vida passei-a à procura de mim no meio dos destroços e não tem sido fácil porque a vida real toma conta de nós e temos os filhos, a família, as relações, as ralações, o trabalho e pouco sobra para tratar de nós, menos ainda quando fomos "programadas" para nunca o fazer.
Que fique registado e de forma bem clara que uma mulher vítima de violência doméstica, quer física, quer psicológica, ou ambas, virá a sofrer de danos psicológicos irreversíveis que poderão tomar as mais diversas formas (mas este é outro assunto extenso que não pretendo abordar agora).
Não há segredos, nem conselhos, nem fórmulas que nos ajudem a livrar de um homem assim. Cada caso é um caso e eu penso que é sempre necessário um elemento detonador, no meu caso foram os filhos, o meu instinto de protecção foi maior do que o medo que sentia.
O verdadeiro poder de um homem sem escrúpulos, de um homem que não gosta de ninguém a não ser de si próprio, reside nas palavras, no momento em que as aplica, na linguagem gestual, na violência implícita nos seus actos, deixando no ar a certeza de que se abrirmos a boca para o contrariar, as coisas vão correr muito mal. O seu poder reside na nossa enorme fraqueza, principalmente, quando somos superiores física ou intelectualmente e nos recusamos a demonstrá-lo. O seu poder reside também no nosso silêncio pleno de cumplicidade.
Porque não começares por aqui? Por quebrar o silêncio? Por falares com outras mulheres? Procurar ajuda, manter viva a ideia de que há vida depois destes homens e que ainda podemos ser felizes!
Por favor, fala com alguém, não deixes que o teu nome venha acabar em mais uma notícia de rodapé dos noticiários iguais às que se seguem:
- "Diz a APAV que "mais de 90% das pessoas ignora os sinais de violência que se passam com vizinhos, amigos ou familiares."
- " ...a vítima era antiga companheira do arguido, tendo este usado "uma arma de fogo" e disparado à "queima-roupa" nas costas daquela, depois de a esperar nas escadas."
- “Não conformado com o fim da relação que mantinha com a sua companheira, que terminara por iniciativa desta... sacou de uma pistola de calibre 6,35 milímetros e atingiu com um tiro a prima da companheira, matando-a”. A ex-companheira foi depois atingida com 2 tiros tendo ficado com lesões “muito graves que a impedem de comunicar verbalmente e de se movimentar sozinha”.
- "Mulher assassinada à facada e paulada pelo companheiro".
- "Mulher encontrada morta com o rosto desfigurado. O assassino era seu companheiro."
- "Mulher e bebé de 2 anos queimados, com maçarico de construção civil, pelo marido e pai das crianças."
- "Em 2014 morreram 42 mulheres. Em média, 4 por mês, 1 por semana. A maioria dos crimes foi cometida com recurso a uma faca. Nestes casos, o agressor demonstra a raiva que sente em relação à sua vítima, bem como a intenção de a fazer sofrer. E essa raiva, essa fúria, esse descontrolo, por parte do agressor, é visível em muitas destas mortes, dado o elevado número de golpes desferidos. São numerosos os casos em que as mulheres são atingidas por sete, oito, nove ou mais facadas, existindo um caso em que a vítima sofreu 17 facadas."
- "A arma de fogo foi o segundo meio mais usado. Nos casos restantes, os homicidas escolheram o afogamento, a asfixia, o estrangulamento, o espancamento e o fogo."
- "Na última década, morreram 398 mulheres em Portugal, vítimas de violência doméstica, cerca de 40 mulheres por ano."
- "NADA MUDOU, apesar das alterações legais, da maior especialização e formação de todos os técnicos e instituições envolvidas. As causas são várias predominando o ciúme doentio, os problemas de dependências de álcool e/ou estupefacientes e situações de puro machismo, onde o agressor entende que a companheira é um objecto cujo proprietário é ele e que, em circunstância alguma, tem a possibilidade de por sua vontade sair daquela relação."
- "Os agressores são principalmente homens, com baixa capacidade de resiliência, baixa capacidade de reacção a situações de frustração, apenas obtendo alívio com a morte da vítima. Este tipo de agressor não teme as consequências penais dos seus actos, afirmando por norma que não és minha não és de mais ninguém.
QUEBRA O CICLO DE VIOLÊNCIA QUEBRANDO O SILÊNCIO!
Eu chamo-me Cristina e fui vítima de violência doméstica. Dou o meu testemunho para vos ajudar...
Não hesite em contactar-me!
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