Não posso negar a admiração que tive por alguns dos dirigentes do Bloco de Esquerda.
Não posso negar, também, a minha decepção com o actual executivo governamental no qual depositei algumas esperanças, um pouco quixotescas, confesso.
Mas foi com estupefacção que li e reli, pensando tratar-se de alguma brincadeira, a manifesta intenção dos bloquistas no sentido de alterarem o Cartão de Cidadão para Cartão de Cidadania por considerarem tratar-se de descriminação e desrespeito para com o sexo feminino. A exemplo do que anteriormente aqui opinei sobre a questão "fundamental" do piropo, volto à carga para me indignar com a excessiva preocupação, por parte do BE, com os direitos fundamentais das mulheres, cidadãs de pleno direito em tudo iguais aos restantes cidadãos.
Ora, eu do sexo feminino me confesso, com orientação heterossexual, não restando quaisquer dúvidas àcerca da minha feminilidade e do modo como tenho lidado com essa condição ao longo dos anos. Devo dizer que estas atitudes do BE me fazem sentir "diferente", ou seja, o excesso de preocupação com pormenores absolutamente ridículos colocam-me no lugar do único aluno com cadeira de rodas a quem os colegas perguntam a cada minuto se está bem, se precisa de algo e demonstram a sua solidariedade para com a inclusão da pessoa diferente, lembrando-lhe a toda a hora as suas dificuldades e tendo ainda a subtileza de usarem camisolas com letras garrafais dizendo:"Todos diferentes, todos iguais!". Por favor, já não há paciência!
Este é o exemplo mais claro da não-questão, de um preciosismo desnecessário e de uma péssima aplicação do erário público no pagamento de salários a estes funcionários do Estado.
Agostinho da Silva defendia que só fazia sentido a democracia se o povo fosse culto e, acima de tudo, se não tivesse fome. Com fome não há cultura, sem cultura não existe democracia.
Desde há tempo demais que povo português assiste à derrocada diária da sua economia, as famílias cada vez mais se desagregam e vivem, mês após mês, uma lenta agonia de contar os dias até ao próximo final do mês. A Segurança Social colapsou e os que mais precisam não conseguem ultrapassar os infindáveis corredores da burocracia, acabando por desistir. A máquina fiscal é um monstro que se alimenta da desgraça alheia. A juventude está ao "Deus dará (ou não)", os idosos cada vez mais entregues a si próprios ou a pior, a classe média desapareceu, os bancos desalojam famílias a um ritmo nunca visto. O clima que se vive é de insegurança e incerteza a todos os níveis. Agora, perguntem-me se eu me importo que o meu Cartão de Cidadão seja sexista... muito mais grave é que o meu cartão não tenha inscrito: "Cartão do Quase Cidadão" pois os meus direitos e dos demais são atropelados a cada dia que passa.
Vou fazer uma analogia com a pesca de arrasto, ou seja, os sucessivos governos democráticos (com especial atenção para o período Socrático) têm sido arrastões que pescam todo o tipo de peixe, desde o tamboril à petinga.
Os únicos que se salvam são os tubarões que atacam o próprio arrastão e conseguem sempre fugir, acabando nas suas casas com uma linda pulseira electrónica e aguardando que lhes seja servida ao jantar uma magnífica caldeirada com as douradas, os robalos, os carapaus e demais peixe-miúdo que não conseguiram escapar às redes de arrasto.
Com toda a humildade possível, deixo algumas sugestões ao BE para utilizar na próxima vez que se lembrar de defender questões de fundo como a do piropo ou do género inscrito na nossa identificação:
- Acabar com a imunidade parlamentar;
- Combater a corrupção com penas exemplares;
- Acabar de vez com os resgates dos Bancos;
- Baixar drasticamente os salários e regalias do executivo governamental e das empresas públicas;
- Controlar os abusos existentes na máquina fiscal;
- De uma vez por todas, criar uma política de protecção social verdadeiramente justa.
É que eu ainda acredito que o exemplo deve vir de cima e a esquerda tem agora uma oportunidade de ouro para demonstrar que não é só mais um governo formado por "gentinha" preocupada em defender os próprios interesses, em manter os injustos e imerecidos benefícios à custa de um povo que começa a perder a esperança de vir a viver dias melhores.
Ponham o nome que quiserem no meu Cartão de Cidadão (não me importo) mas façam-me sentir um cidadão!